Na primeira seca do Bolsa Família, fome ainda assusta

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Maria do Socorro da Silva (quarta a partir da esquerda) tem a ajuda da aposentadoria de uma filha para sustentar a família: “Só a Bolsa Família não dava conta”
“Juá não cai no seco.” Segundo os populares de Cabrobó, no sertão do São Francisco, em Pernambuco, a máxima é centenária e jamais havia sido desmentida até 2012, ano que promete ser lembrado nas próximas décadas com uma das secas mais severas já vistas no semiárido nordestino. Em abril deste ano, quando deveria estar chovendo, o pequeno fruto amarelado encontrou pela primeira vez o chão esturricado ao cair do juazeiro. A estiagem em curso também desafia a eficácia do Bolsa Família no combate à fome, uma ilustre conhecida que ainda assombra os sertanejos.
 

De acordo com o Ministério da Integração Nacional, 769 municípios nordestinos estão oficialmente em estado de emergência. A maior parte está na Bahia, com 214 cidades, seguida pela Paraíba, com 172, e o Piauí, com 140. O número de pessoas afetadas está estimado em 12 milhões, praticamente toda a população do semiárido, onde a quantidade de chuva é, em média, 50% inferior à registrada em anos anteriores. O prejuízo para a economia do Nordeste, segundo o ministro Fernando Bezerra, poderá passar dos R$ 12 bilhões.
Na região de Cabrobó, localizada no chamado “polígono”, a última chuva caiu no dia 19 de março, ainda assim em volume irrisório. Números do governo pernambucano apontam um recuo de 62% no nível de chuvas registradas nessa localidade entre janeiro e maio, se comparado ao mesmo período de 2011, que já foi considerado baixo. As águas normalmente caem entre janeiro e maio, em um regime com o qual o sertanejo já está habituado e consegue se planejar minimamente, complementando com agricultura o Bolsa Família, que se tornou a principal fonte de renda da maioria das famílias.
 “No ano passado a gente plantou milho, feijão, abóbora, mandioca e até melancia. Em um ano normal, dá para o cabra comer”, explica o lavrador Belmiro Carvalho de Souza, que vive na comunidade Murici Novo, zona rural de Cabrobó. Com 67 anos de semiárido, ele diz jamais ter visto uma seca tão árdua. Como muitos outros no sertão pernambucano, seu Belmiro menciona a estiagem de 1993, quando o desespero da fome resultou em violência e saques. Ainda assim, garante que a aridez é maior neste ano. “A seca está um perigo, o açude está secando e para beber mesmo só a água do carro-pipa”, relata.
Apesar do menor volume de chuva, o veterano em secas diz que a vida melhorou no semiárido. Os programas de transferência de renda do governo federal, especialmente o Bolsa Família, tornaram menos aterrador o quadro típico da seca, com migrações em massa e pessoas morrendo de fome. Antes das bolsas, as alternativas de sobrevivência se resumiam à fabricação de carvão – na qual muitos sertanejos adoeceram – e às chamadas emergências, em que as pessoas trabalhavam cavando poços em troca de cestas básicas.
“Comparando a seca deste ano com a de 1993, não há dúvida de que a atual é mais severa, porém com impacto menor sobre a vida das pessoas”, avalia Diolando Saraiva, técnico da ONG Caatinga, que dá assistência técnica a famílias pobres na região de Ouricuri, no sertão do Araripe, também em Pernambuco. Segundo ele, o dinheiro do Bolsa Família garante a alimentação de quase todos no semiárido. Quase, porque ainda há muita gente passando fome nos rincões do Nordeste, especialmente nas famílias mais numerosas.
É o caso de seu Belmiro, que gastou alguns minutos para contabilizar o número de bocas alimentadas diariamente em seus domínios. E não conseguiu. “Umas 24, mais ao menos”, disse o velho sertanejo, referindo-se à numerosa família, distribuída em três casas, cada uma com uma bolsa do governo. Ao todo, são R$ 530 mensais para todo mundo, ou pouco mais de R$ 22 por pessoa. “Isso quando não aparece um parente ou vizinho precisando de ajuda”, emendou Aurora Alves de Souza, esposa de Belmiro. “Às vezes não tem nem a bolacha, e tem gente que vai dormir com fome”, ela confessa.
Belmiro de Souza: “A seca está um perigo, o açude está secando e para beber mesmo só a água do carro-pipa”
Ainda no sertão do São Francisco, em uma minúscula casa de taipa no povoado de Cachoeirinha, a dona de casa Maria do Socorro da Silva vive drama semelhante. A seca devastou a pequena plantação de milho e o “comer” da família de nove pessoas ficaria por conta dos R$ 268 do Bolsa Família, não fosse a aposentadoria por invalidez de uma das filhas, que tem uma doença mental. Muito encabulada, ela chamou de “sorte” o fato de receber o benefício. “Se não tivesse isso, a gente passava fome. Só a Bolsa Família não dava conta.”
Mesmo insuficiente para garantir a alimentação adequada de muitos, o programa é exaltado no semiárido. O incremento na renda é percebido nas casas sertanejas, ainda muito humildes, mas quase todas com eletrodomésticos. As motocicletas estão por toda parte, cortando as estradas de terra seca e deixando sem utilidade os jumentos, que ficam perambulando a esmo pelas rodovias. Outro sintoma é a enorme quantidade de lixo acumulado, mesmo nos povoados mais pobres. “Isso é reflexo do maior acesso a bens industrializados”, explica Eliel Torres, técnico do Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA).
Ele explica que a primeira grande seca do século XXI apresenta sertanejos mais atentos aos seus direitos. “Olhando para trás, percebemos agora que há também a fome de cidadania. O agricultor quer botar seu filho na escola, quer comprar uma roupa”, conta ele, que há anos acompanha as famílias pobres da zona rural de Cabrobó. “Antes, só comer já era lucro. Tinha situações em que não havia nem a farinha. O cara achava que aquela era sua sina. Agora é diferente”, completa.
Criado para expandir os efeitos do Bolsa Família, o programa Brasil Sem Miséria está prestes a completar um ano, mas ainda engatinha no sertão de Pernambuco. A ONG Caatinga venceu a chamada pública para coordenar na região um dos braços do programa, chamado Fomento, pelo qual cada família identificada – com renda mensal inferior a R$ 70 por pessoa – recebe R$ 2,4 mil, em três parcelas, para investir na melhoria da atividade produtiva.
“Primeiro, fazemos um diagnóstico, para saber qual a atividade mais adequada. Pode ser criação de galinha, de caprinos, produção de hortaliças, entre outras. Depois, juntamos todos os membros da família e distribuímos as tarefas. Aí partimos para a implantação”, explicou o técnico da ONG. Depois dessa etapa é feito o acompanhamento, que vai do controle de pragas ao manejo dos resíduos. O programa, diz ele, ainda está na fase de diagnóstico.
Ontem, um grupo vinculado à Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura Familiar (Fetraf), ocupou o Ministério da Fazenda até às 11 horas da manhã, reivindicando crédito e medidas para mitigar a seca. O ministério informou que vai analisar os pedidos e marcou para hoje uma reunião do grupo com o secretário-adjunto de Política Agrícola da Secretaria de Política Econômica (SPE) do Ministério da Fazenda, João Rabelo. Além de medidas emergenciais, os manifestantes pedem mais recursos para a agricultura familiar, mais acesso a terras, reforma agrária, além de restruturação do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), explicou a coordenadora-geral da Fetraf-Brasil, Elisângela Araújo.
Por Murillo Camarotto | De Cabrobó, Ouricuri e Trindade (PE)

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